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sábado, outubro 30, 2004

A lei da rolha e a sorte de uns camponeses lá longe
Comentário ético-gastronómico


Primeiro um comentário puramente gastronómico. Para acompanhar o meu jantar, comprei uma garrafa de vinho tinto, um Merlot vindo do Chile. O vinho em si é bom, e sobretudo a relação preço/qualidade é bastante interessante. É muito mais barato do que o preço que teria que pagar por uma garrafa de idêntica qualidade de um vinho português (comprado aqui na Bélgica). Devo dizer que um pouco por patriotismo mal dirigido, mas sobretudo porque em vinho português tenho algum conhecimento e alguma cultura, costumo restringir as minhas compras ao bom velho vinho português e um ou outro valor seguro francês, sobretudo daqueles em que (ainda?) não pagamos a "marca". No que diz respeito aos vinhos do resto do mundo, a minha cultura apenas toca a Espanha, França e Itália, mas em cada um destes casos, apenas pela rama.

Como comentário de estrangeirado, entristeceu-me durante muito tempo a fraca qualidade do vinho que exportamos, sobretudo do que chega aos supermercados belgas. Durante muito tempo o vinho português que era possível encontrar nos escaparates das grandes cadeias belgas era muito fraco e, para a qualidade, muito caro. Só mesmo esse tal patriotismo mal dirigido, ou uma crise aguda de saudades de casa guiavam as vendas... As coisas começaram a mudar, talvez há dois anos, e agora já encontramos em supermercado vinhos na gama média, vinho que posso comprar e mesmo oferecer com prazer. Em mercearias portuguesas, ou em lojas especializadas, sempre foi possível encontrar bom vinho português, caro, mas possível.

Mas o que me faz escrever estas linhas não é o vinho em si, mas sim a rolha.
Vamos lá então à lei da rolha: pela primeira vez na minha vida, abro uma garrafa, e, para meu grande espanto, a rolha não era de cortiça. Vivi, mesmo que apenas durante um instante, um choque cultural. É uma rolha de plástico, que imita a cortiça mesmo no seu aspecto, certamente com algumas vantagens, mas penso que com algumas desvantagens também. O plástico é mais barato, não se desfaz, parece-me mais impermeável (como cientista que sou, vou destruir a rolha de plástico para a conhecer melhor!)... Mas a cortiça é natural, a sua relativa permeabilidade pode ser uma vantagem... Além disso abrir uma garrafa é uma arte, que se esta mania se generaliza, se pode perder, ou pelo menos se tornar ainda mais elitista (não, não estou a brincar!).
Há também algo de mágico, de português, mas ao mesmo tempo universal na cortiça, que me fez falta nesta garrafa. A cortiça deve ser o produto português mais exportado e sobretudo o mais presente em produtos de luxo. As rolhas em cortiça são como que um farol cultural que nos segue onde quer que vamos, um motivo de orgulho nacional e pessoal. Agora? Se a cortiça passa a estar presente apenas no vinho caro, que outro farol, que outro fio de luz nos pode guiar? Pensem nisso! A rolha de cortiça é realmente uma referência económica e cultural portuguesa num mundo que alguns tentam tornar cada vez mais igual e sem sabor, num nivelamento por baixo.

A directiva europeia do vinho é, ou melhor, foi, uma derrota para o vinho Made in Portugal, sobretudo porque permitiu a comercialização em Portugal e em todo o lado, sob o nome de "Vinho" de produtos que nós chamamos "vinho a martelo".
Talvez ainda estejamos a tempo de tentar recuperar pelo menos um pouco do terreno perdido, pedindo uma directiva europeia da rolha! Que quando for transposta em lei portuguesa, será a lei da rolha... (Espera aí, não foi isso que fizeram ao Marcelo Rebelo de Sousa? Isso é outra história, mas que confirma a necessidade de rolhas porosas e permeáveis!)
Algumas das pessoas que eu espero serem leitoras assíduas deste blog pertencem a famílias produtoras de cortiça. Num dos casos devo escrever "ex-produtora", pois tudo ardeu este Verão. Gostaria de ter a vossa opinião.
Mais uma informação para o debate, hoje li que a corticeira Amorim aumentou os seus lucros em 30% em relação ao ano passado, em grande parte porque produziu menos rolhas de cortiça e mais produtos com "mais valor acrescentado", como solos, produtos de isolação térmica e acústica, etc..

Isto leva-me ao meu ponto seguinte, sobre outro produto onde cada vez mais se vê uma mudança para as variantes de "maior valor acrescentado", o arroz.
No caso do arroz, de forma paralela às rolhas de cortiça, duas coisas aconteceram : o espaço dedicado ao arroz nos supermercados diminuiu ao mesmo tempo que o número de variantes de "arroz de valor acrescentado" aumentou terrivelmente. Uma outra observação que advém das duas precedentes, é que o espaço dedicado arroz "normal" diminui. Agora posso comprar 25 tipos de arroz pré cozido, pré lavado, com denominações especiais, todas vindas de companhias multinacionais. Mas para encontrar o simples arroz que sempre conheci, tenho que olhar para cima, para a prateleira a 2 metros de altura, onde muita avozinha me pede se eu lhe faço o favor de lhe tirar uma embalagem para ela também. OK, eu não sou parvo, sei que o arroz de valor acrescentado dá mais dinheiro ao supermercado, e também à multinacional. Podem pedir um preço muito mais elevado pelo mesmo Kg de arroz, mas eu quero, tão só e apenas o arroz normal, que, digo-o mais uma vez, começa a ser difícil de encontrar em alguns supermercados (não, não estou a brincar). Entre o arroz pré cozido, o cozido a vapor, o descascado, e em 20 ou 30 variantes de apenas 2 ou 3 marcas diferentes, perdeu-se o produto original. Mais uma vez, baseio-me nos supermercados belgas, mas tenho constatado a mesma tendência em Portugal, se bem que, felizmente, mais embrionária.

Pior do que essa constatação é a maneira. Talvez não saibam, mas, por exemplo, a palavra "Basmati" escrita numa embalagem de arroz, na maior parte do mundo ocidental é uma marca registada por uma multinacional. O que quer dizer que, cooperativas de camponeses que produzem verdadeiro arroz "Basmati" da maneira tradicional, sem "valor acrescentado", lá onde ele foi sempre produzido, não podem escrever a palavra na embalagem do seu produto.
Imaginem o ridículo, pensem por um momento o que seria se a Unilever, a Kraft ou a Procter&Gamble tivessem o direito exclusivo de utilizar uma marca bem portuguesa, digamos a marca "Vinho do Porto" (eu sei que não se aplica, é uma região demarcada, é apenas uma imagem para defender o meu argumento). Eles podem decidir atribuir o nome "Vinho do Porto", ao próximo detergente, a um novo chocolate ou mesmo a uma bebida alcoólica qualquer. De seguida eles processariam todos os produtores portugueses de vinho do porto que tentassem vender uma garrafa com a menção "Vinho do Porto" porque estariam a infringir uma marca registada. Esses produtores seriam obrigados a vender as suas garrafas de vinho do porto, sob a menção "Vinho", ou "vinho licoroso", relegando a descrição "Porto" para os detalhes na parte de trás da garrafa.
Este é o caso hoje dos tradicionais produtores de arroz basmati que não se dobram às exigências de uma multinacional (não é nenhuma das que eu citei, esqueci-me do nome!) e que insistem em vender o seu próprio arroz, como é de seu direito. É muito mais do que apenas ridículo é injusto, e a única razão pela qual isso se pode passar é porque as pessoas que são vítimas dessa injustiça moram em países longínquos e são, na sua grande maioria, camponeses pobres. As multinacionais do arroz compram a produção da maior parte dos pequenos produtores, e são em parte responsáveis da sua miséria. Os lucros dessas companhias não regressam aos locais de origem. A cadeia de valor está toda sob controlo da multinacional, de tal maneira que até nos impingem o tal "arroz de valor acrescentado".

Como para além do bom vinho também gosto de arroz, e também de experimentar variedades exóticas de arroz, tomei há algum tempo uma decisão que tenho mantido: deixei de comprar arroz de "marca ocidental". Mudei-me para o arroz com a garantia do comércio justo. Hoje comprei arroz Hom Mali. Tem um sabor especial, demora mais tempo a cozer. Mas é bom, muito bom mesmo. É comercializado na Bélgica pela ONG Oxfam, sob a marca "fair trade", e exibe um selo de garantia de comércio justo verificada de forma constante por outra ONG, o selo "Max Havelaar".

O seu preço, cerca de duas vezes mais por Kg que o arroz multinacional. Equivalente à maioria dos arrozes de valor acrescentado. Mas sei que o que pago por este arroz, regressa, de forma bem mais honesta e justa, ao agricultor que produz o arroz. E que contribui para o desenvolvimento local, em infra-estruturas e empregos. Sei com toda a certeza que os 2 euros que paguei não se desperdiçam em salários milionários de gestores que estão mais interessados em me vender arroz já cozido e pronto a comer porque isso lhes dá mais dinheiro, em vez de tentar saber o que eu, consumidor de arroz, quero.

A diferença de preço é mínima, é certamente nada quando comparado com o preço de uma consciência um pouco mais tranquila.

1 Comentários:

Anonymous Anónimo opinou:

Ruru, belo post!
Concordo plenamente contigo. Viva a rolha! Sobretudo, viva o bom vinho tuga q vem dentro da garrafa que é fechada pela rolha.
Cá por mz os vinhos tugas levam com 3 meses de calor em contentores, e como cá o poder de compra é baixo, só vem vinho martelado. Conclusão: Viva o vinho sul africano que é bem bom - melhor até que o frances e pasmem-se, tem preço melhor que o português!!!!
Indo pró arroz, tens sorte em poder comprar 20 variedades de arroz. Cá, os locais, compram trinca - arroz partido - e um saco de 25kg é a comida da familia toda para um mês.
Concordo com a compra do arroz - eu próprio sou esquizito com o arroz que compro, mas felizmente em áfrica ainda é "basic". Escolhes o arroz - agylha, longo, extra longo, basmati, rissoto ou outro e metes e tás lá. Isso do pré cozido são paneleirices, pois arroz sem esturgido não é arroz!
Curti o teu post, viva o 3º mundo, vamos todos fazer o manguito - e já agora um car#$ho" às multinacionais que explorar os pobres, fracos, oprimidos e trabalhadores.

6:33 da tarde  

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