Viagem no espaço e no tempo
Sábado passado parti de Bruxelas não muito tarde, para ir até Lille, Lille França, Lille capital europeia da cultura em 2004.
Objectivo, o museu "d'Art Moderne de Lille Métropole", em Villeneuve d'Asq, objectivo último, uma viagem no espaço e no tempo, da Europa ao México, de 2004 a 1910, e numa tarde percorrer o período de 1910 a 1960. Visitar o México mas não um México qualquer, o México artístico de Diego Rivera, de Frida Khalo, de Siqueiros, de Cueto, de Ruiz. Um México mágico que me fascina desde a leitura do livro "Os anos de Laura Diaz", de Carlos Fuentes, fascínio cultivado com obras da Taschen, e uma ou outra visita cultural. Um México original mas também um México europeu, com artistas formados em Paris mas também, destino de muitos exilados das muitas guerras que fustigaram a Europa nesse intervalo de tempo, exilados da União Soviética, exilados da guerra civil de Espanha, exilados da segunda guerra mundial,...
A primeira surpresa foi a entrada do museu. Num belo jardim, várias estátuas, entre elas, uma de Picasso, mas, para mim o interesse foi sobretudo para duas obras de Calder. "Guilhotina para 8", uma obra estática. Mas também e acima de tudo, um dos seus objectos em movimento, em equilíbrio instável.
Alguma vez sonharam com o que se encontra à porta de algo que nos permite viajar no espaço e no tempo? Foi isto que encontrei!
Calder é um dos meus escultores favoritos, e tive a sorte de, em 2003, passar por Bilbau durante uma retrospectiva de Calder no Guggenheim, chamada muito apropriadamente "Calder. Gravity and Grace". Esta frase resume o que eu mais aprecio em Calder, uma sensação de que as suas obras estão em equilíbrio instável, e que podem "cair", mudar de forma, reconfigurar-se à primeira brisa, ao primeiro sopro. Muitas são móveis, e a mudança de forma é mesmo um dos principais objectivos do escultor. Calder não é mexicano, antes um americano de Paris. Esta obra está em exibição permanente nos jardins do museu.
Regressemos então ao "México". Entrei no museu, comprei o bilhete, mas antes de entrar na máquina do tempo, procurei reconfortar o estômago. Como em muitos museus, também aqui se come bem. Uma espécie de "fast food" calma e com alguma classe, não fosse isto um museu e, não se esqueçam, estamos em França. Uma tarde de salmão como eu também sou capaz de fazer, mas não tenho feito ultimamente. Bem servida, inundada em salada, o tudo acompanhado por uma cerveja branca belga.
O corpo reconfortado venha o conforto do espírito. Entremos então nesta máquina do tempo.
Algumas instruções, um pouco de enquadramento histórico e estamos prontos para 1910.
1910, Rivera vive em Paris, partilha um apartamento com Modigliani.
Já pensaram como é que dois pintores se insultam um ao outro? Neste caso, pintando o outro, e exagerando os seus defeitos. Três retratos Modigliani por Rivera (cada vez mais magro), e dois de Rivera por Modigliani (cada vez mais gordo), mostram a evolução das relações entre eles, que se terminaram em separação mais ou menos violenta.
Este detalhe e outros, como a comparação entre um Picasso, e um Rivera semi-cubista, mostra como a exposição foi muito bem concebida. De Paris regressamos ao México, e de Rivera passamos a Posada, cujo nome não conhecia, mas cuja caveira revolucionária já tinha visto algures, e passamos também aos anos 20. Duas salas mais, mais uma década, os anos 30 com Ruiz e as suas "paisagens-corpos", meio Escherianas mas com um toque de Magritte, e mais Rivera, agora de regresso a casa. "A vendedora de flores" marca aqui simbolicamente esse regresso a casa, numa sala impressionante, de que este quadro é a peça central, mas que também contém alguns estudos para um dos seus murais "desaparecidos" para o Rockefeller de Nova Iorque (famosa pela polémica que gerou, e que acabou por dar azo à sua destruição...).
As salas seguintes foram a maior decepção - os murais. Apenas dois, com 3 a 4 metros de altura, por metro e meio de largura. Um de Rivera, um estudo de Siqueiros, pouco mais. Talvez eu tivesse expectativas em excesso... Parece que apenas estes dois murais pesam qualquer coisa com 30 toneladas! Imagino que seja difícil transportar obras deste tamanho.
Após a decepção dos murais, uma surpresa agradável, e uma descoberta parcial: máscaras metálicas de Cueto, início dos anos 30. Aos anos 30 seguiram-se os 40, aqui representados pela gravura e litografia, e, na sala seguinte, foco de atenção da maior parte dos visitantes: os auto-retratos de Frida Khalo. Parece que toda a gente conhece Frida Khalo, até fizeram um filme sobre a vida dela. Não vi o filme, nem sabia da sua existência (obrigado Bruno)... Os seus retratos são perturbadores, tristes, mesmo dolorosos, e talvez por tudo isso não me despertam uma grande admiração. As suas naturezas mortas são mais ligeiras, quase humorísticas, pois contêm sempre algures um animal vivo, um periquito, ou uma bandeira mexicana, ou uma mensagem para um amigo. A sala dedicada a Frida Khalo e as seguintes concentra as restantes contribuições femininas à arte mexicana deste período. Entre elas uma agradável surpresa, Alice Rahon! Não conhecia mas fiquei muito impressionado pela pura beleza e bem-estar que me proporcionaram as duas telas expostas. Admirei a técnica, mistura de óleo com areia para obter telas com uma textura muito especial, os temas, ligeiros mas nada superficiais, e a beleza quase infantil com que ela combina cores e desenhos (esses verdadeiramente infantis).
Mais duas salas, e mais uma década, a de 50, navegando no mar do surrealismo... Depois de tudo o que já tinha visto, estas salas deixaram muito a desejar, e, se a exposição fosse México-Europa, 1910-1950, não sei se se teria perdido muito.
Fim da viagem. México 1960... Mais um passo, salto no tempo e no espaço, Lille 2004.
Mais dois passos, e aí sim uma verdadeira decepção. Não há catálogo da exposição à venda, nem nenhuma forma de sucedâneo. Apenas 4 postais, mal escolhidos, dos quais apenas compro a vendedora de flores de Rivera.
Caminho, agora entre a chuva, até ao carro. Duas horas de carro. Bruxelas, 2004. Conduzo de noite. Fim da viagem, regresso à vida normal, despir a capa de viajante. Chego a tempo de uma conversa transatlântica, Bruxelas - Boston, a tempo de partilhar um pouco da viagem. Sempre a tempo de amealhar memórias para o resto do inverno.
P.S.-
Dêem uma olhadela ao programa da minha viagem no espaço e no tempo:
México-Europa, 1910-1960, Ida e Volta
E ao museu:
Museu de arte moderna de Lille
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